quinta-feira, 26 de março de 2020

Por que o tema "200 anos da chegada de Saint Hilaire no RS" merece atenção especial


por Rogério Bastos
@rogeriopbastos

NA REGIÃO  METROPOLITANA
O arraial de Viamão, mais conhecido pelo nome de Capela, entrou em quase completo abandono desde a fundação de Porto Alegre, melhor situada sob o ponto de vista comercial. No entanto, desde a cidade de São Paulo Saint-Hilaire não havia encontrado uma igreja comparável à da localidade, bem conservada, extremamente asseada e ornamentada com bom gosto.
As imediações de Porto Alegre fazem-no lembrar o sul da Europa e tudo quanto ele tem de mais encantador. A cidade, situada em agradável posição numa pequena península formada por uma colina que se projeta sobre o Guaíba, conta com uma população de dez a doze mil almas. O porto dá calado para sumacas, brigues e galeras de três mastros. Ele conta cerca de trinta embarcações atracadas, mas o informam de que frequentemente esse número se eleva a cinquenta. A rua da Praia, comercial, é muito movimentada, com gente a pé e a cavalo, marinheiros e muitos negros carregando volumes diversos. Próximo ao cais fica o mercado, em que se vendem laranjas, amendoim, carne-seca, lenha, hortaliças e, nessa época do ano, pinhões. Mais uma vez Saint-Hilaire comenta que aqui as mulheres não se escondem, e acrescenta que, embora não havendo tanta vida social como nas cidades europeias (não há nenhum clube), não resta dúvida haver muito mais que nas outras cidades do Brasil. Vai a um pequeno baile, em residência particular, onde depara com cerca de quarenta pessoas entre homens e mulheres:
"Ainda não tinha visto no Brasil uma reunião semelhante. No interior as mulheres se escondem e não passam de primeiras escravas da casa, ao passo que os homens não têm mínima Ideia dos prazeres que se podem usufruir decentemente. Aqui, dançaram-se valsas, contradanças e bailados espanhóis, algumas senhoras tocaram piano, outras cantaram com muita arte acompanhadas ao bandolim, e a festa terminou com pequenos jogos de salão. Encontrei modos distintos em todos. As senhoras falam desembaraçadamente com os homens, e estes cercam-nas de gentileza — sem contudo demonstrarem empenho de agradar, qualidade esta quase exclusiva do francês”.





NA REGIÃO CENTRAL
Saint-Hilaire, com sua carreta e seus criados, vinha da região das Missões e foi consequentemente pelo oeste — pela íngreme serra de São Martinho — que entrou na Região Central. Em Toropi-Grande encontra um velho índio que sabe ler e escrever, fala bem o Português, anda bem vestido, é muito honrado, goza de certa abastança, possui uma estância, cavalos e gado, conduz seus negócios com método e casou suas filhas com homens brancos. (Debret também registraria em aquarela um desses estancieiros índios.)
O Acampamento de Santa Maria, habitado por comerciantes que fornecem fumo, aguardente e outras mercadorias, conta com cerca de trinta casas e com uma capela dependente da paróquia de São João da Cachoeira.
Cachoeira é, efetivamente, a primeira povoação que se encontra na estrada que vem das Missões. A essa altura Saint-Hilaire se dá conta de que vinha concluindo uma viagem de quase 600 léguas por uma região sulcada de rios e, inacreditavelmente, não encontrara sequer uma ponte.
A vila de Rio Pardo é inteiramente nova, tendo sido substituídas as irregulares palhoças que de início haviam caracterizado a localidade. Várias casas grandes e bem construídas, sacadas envidraçadas, a rua principal com largo trecho calçado. Produtos agrícolas fornecidos pelas freguesias de Encruzilhada e Taquari. Muitas charqueadas à margem do rio Jacuí à altura da confluência com o Taquari e um tanto além. Saint-Hilaire gostaria de ter sido convidado para uma reunião social, pois haviam louvado muito as mulheres de Rio Pardo, "com modos tão agradáveis quanto às de Montevidéu". No entanto, só pôde avaliá-las através da esposa e filhas do Sargento-Mor Figueiredo Neves, "efetivamente muito distintas e educadas".
Poderia ir por terra de Rio Pardo a Porto Alegre, mas, como seria preciso vadear os rios Taquari e Caí, preferiu vender carreta, bois e cavalos e seguir por água, servindo-se de uma das "canoas grandes" aplicadas ao transporte de mercadorias entre as duas cidades (canoas de um mastro, de 55 a 62 palmos de comprimento por até 20 de largura). Informa que eram dez os barcos habitualmente aplicados nessa linha, cada um fazendo anualmente de quinze a vinte viagens de ida e volta.
Descendo o rio Jacuí, cruzou diante da aldeia de Santo Amaro, da Freguesia Nova (Triunfo), de diversas charqueadas, da ilha do Fanfa (medindo uma légua) e da ilha Rasa (habitada). Após ter recebido o Taquari, o rio Jacuí tornou-se bem mais largo, talvez tão largo quanto o Loire diante de Orléans.
"Cruzamos com vários barcos, muito bonitos, em demanda de Rio Pardo. Tais são as embarcações de que se servem aqueles que têm pressa de ir de Porto Alegre a essa cidade. Chamam-se canoas ligeiras, para distingui-las dos barcos de transporte."


NA ZONA SUL


        Saint-Hilaire não desceu do rio Jacuí através das estâncias do rio Camaquã até a várzea do São Gonçalo. Inversamente, encontrava-se na vila de Rio Grande quando teve oportunidade de subir até àquela várzea, no iate e em companhia do empresário António José Rodrigues Chaves, português de nascimento e então com residência e charqueada nas cercanias de São Francisco de Paula.
      "A viagem foi muito agradável. O Senhor Rodrigues Chaves é um homem culto, sabendo o Latim, o Francês, com leituras de História Natural, conversa muito bem".
       "Diante da charqueada do Senhor Chaves estendem-se vá¬rias fileiras, compridas, de grossos paus fincados na terra, com varões transversais destinados a estender a carne a secar. A carne-seca não se conserva mais de um ano: é exportada principalmente para o Rio de Janeiro, Bahia e Havana, onde serve de alimento para os negros".

       "A mesa de meu hospedeiro é farta. É principalmente a carne de vaca que se apresenta em feitios variados; contudo temos pão e vinhos às refeições".
       "Esta região pertence a charqueadores, que aí recebem, sem a mínima dificuldade, o gado criado nas gordas pastagens situadas ao sul do Jacuí. Há entre eles homens muito ricos. Há atualmente dezoito charqueadas nessa paróquia, e a média de animais abatidos por ano é de cerca de vinte mil".
       "Fui hoje com o Senhor Chaves à aldeia (Pelotas), viajando em cabriole descoberto. Nada tão belo como'a região por nós atravessada. Nos pomares, na maioria muito grandes, são cultivadas laranjeiras, pessegueiros, parreiras, legumes e algumas flores".
      "A aldeia conta para mais de cem casas, construídas segundo um plano regular de edificação. As ruas são largas e retas. Não se vê uma palhoça sequer e tudo aqui anuncia abastança. Os homens que encontrei achavam-se vestidos com asseio e vi várias lojas sortidas de mercadorias diversas. Operários e principalmente negociantes constituem a população."
      "Muito significativo o seu registro a respeito dos escravos. Embora venhamos a saber, depois, que o Senhor Rodrigues Chaves era um homem perfeitamente imbuído dos ideais do liberalismo, com tendência republicana e franco adepto da abolição da escravatura, seu comportamento diante dos negros refletia a mesma insensibilidade já observada de um modo geral entre os sul-rio-grandenses".
      "Nas charqueadas os negros são tratados com rudeza. O Senhor Chaves, tido como um dos charqueadores mais humanos, só fala aos seus escravos com exagerada severidade, no que é imitado por sua mulher; os escravos parecem tremer diante de seus donos".
     "Há sempre na sala um pequeno negro de dez ou doze anos, cuja função é ir chamar os outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que essa criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca! Passa a vida tristemente encostado à parede e é frequentemente maltratado pelos filhos do dono. À noite chega-lhe o sono e, quando não há ninguém na sala, cai de joelhos para poder dormir. Não é esta casa a única que usa esse impiedoso sistema: ele é frequente em outras."
  

    Provavelmente esteja aqui localizada, no tempo e no espaço, a origem da lenda e mito do Negrinho do Pastoreio, arquétipo a que se reportam os humildes maltratados pelos poderosos. Era uma vez um estancieiro com muito campo, muito gado, uma tropilha de cavalos de pêlo tordilho, muitas onças de ouro e um filho. Tinha também um cavalo parelheiro e um negrinho escravo que, por ser de peso muito leve, é quem corria esse baio nas carreiras. Tendo perdido uma carreira, por castigo o Sinhô manda que ele vá pastorear a tropilha de cavalos tordilhos, não deixando nenhum escapar.
        O filho do Sinhô espanta a tropilha e, em meio à noite escura, o Sinhô dá o castigo do negrinho ir procurá-la. Ele pega um toco de vela no oratório da estância, sai peio campo e, à medida que os pingos da vela respingam, tornam-se outras tantas velas que atraem a tropilha. O filho do Sinhô torna a espantar a tropilha e, como último castigo, o Sinhô surra tanto o negrinho a ponto de matá-lo. Para não perder tempo, atira-o num formigueiro em vez de sepultura. No dia seguinte o Sinhô vai ver se as formigas já devoraram todo o corpo do negrinho mas tem a surpresa de vê-lo sair sãozinho, montar no parelheiro baio e subir para o céu levando a tropilha dos tordilhos. Sob a proteção de Nossa Senhora, o Negrinho do Pastoreio acha qualquer coisa que a gente tenha perdido, desde que se lhe acenda um toco de vela - Lembra Luiz Carlos Barbosa Lessa, sobre a Lenda do Negrinho do Pastoreio.


Continuamos...

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