quinta-feira, 16 de abril de 2020

Por que o tema "200 anos da chegada de Saint Hilaire no RS" merece atenção especial

por Rogério Bastos
@rogeriopbastos


NO LITORAL SUL

            Em prosseguimento à cruzada pelo Litoral Norte (Palmares, São Simão, Mostardas e lagoa do Peixe), a comitiva do Conde da Figueira hospeda-se na freguesia do Estreito, da qual depende o Norte, "que é o porto da vila de São Pedro". A aldeia do Estreito era outrora mais a leste, mas, como as casas foram soterradas pelos turbilhões de areia que o vento atira das margens do mar, mudaram as habitações para onde se encontram no momento, "onde, entretanto, terão em breve a mesma sorte". A desolada paróquia se estende por 19 léguas, até a extremidade do istmo, e dois terços de sua população compõem-se de escravos, ligados à atividade do porto do Norte.

           Em São Pedro (Rio Grande), que é uma vila com cerca de duas mil almas, a comitiva do Conde da Figueira se acomoda na grande residência para hóspedes do Sargento-Mor Mateus da Cunha Teles. "Este é natural de Açores, fez fortuna neste país e associou-se a João Rodrigues para a arrecadação dos impostos sobre couros. É quem recebe todos os oficiais que vão a Montevidéu e hospedou mesmo, em sua casa, durante quarenta dias, todo o Estado-Maior do Barão de Laguna (General Lecor)."

           Saint-Hilaire participa de um novo baile, onde encontra homens e mulheres muito bem trajados. "Eram cerca de sessenta mulheres. Usavam vestidos de seda branca, sapatos de cetim e meias de seda; jovens e velhas traziam a cabeça descoberta, os cabelos armados por uma travessa e enfeitados com flores artificiais. Achavam-se assentadas ao redor do salão em cadeiras colocadas em várias linhas. Os homens, em muito menor número, estavam de pé. Era quase preciso obrigar os homens a tirar as senhoras para dançar e, excetuado o conde, ninguém conversava com o elemento feminino.

           Também participa de mais um banquete, servido com luxo, e deixa enfático registro sobre o hábito de erguer brindes e louvações à saúde uns dos outros: "Após a sobremesa serviram-nos café e licores. Durante o jantar foram trocados vários brindes, repetidos agora frente aos licores. A reunião prolongou-se até alta noite e a maior parte dos convivas retiraram-se bastante tocados pelas bebidas. Os portugueses e brasileiros usam beber o vinho puro e nos grandes jantares a praxe dos brindes leva-os a libações demasiadas".

Como não poderia deixar de ser, uma referência à barra diabólica:
          "A barra do Rio Grande apresenta uma notável irregularidade — é que não fica sempre no mesmo lugar. Há vinte anos era mais setentrional que a atual, mas as areias obstruindo-a pouco a pouco tornaram-na apenas transponível às pirogas".

            "Antes da guerra que envolveu o Prata, porque a barra é muito perigosa e porque o charque dessas cercanias é inferior ao de Buenos Aires e Montevidéu, era nesses portos que mais a procuravam. Mas depois da guerra Rio Grande tornou-se centro desse comércio e por isso um importante porto para o Brasil."

Uma referência explícita à solidão:

           "Nada se iguala à tristeza destes lugares. De um lado o oceano a rugir, e do outro o rio. O terreno, extremamente chato e quase ao mesmo nível do mar, não passa de branquicentos areais. Destroços de embarcações, semienterrados na areia, lembram terríveis desastres. O refluxo das águas do rio, ocasionado pelo mar, e a falta de profundidade são as causas das dificuldades que a barra apresenta à navegação e dos naufrágios frequentes ali registrados".

            "Para evitar naufrágios, um homem, continuamente encarregado de sondar a barra, por sinais, informa às embarcações se a quantidade d’água, que varia sem cessar, lhes permite a entrada. Esse prático recebe 10 mil-réis de cada embarcação que sai ou entra".

           "Embarcações denominadas catraias, movidas a vela ou a remo, fazem o transporte entre Rio Grande e Norte. Os moradores da região distinguem esses lugares simplesmente pelos nomes de Sul e Norte, mas a aldeia do Norte chama-se propriamente São José do Norte. Sob todos os pontos de vista ela parece ter sido muito pouco favorecida pelos poderes públicos".

           "Em São Pedro do Sul somente podem ancorar iates. Mas é em São Pedro que existe a Alfândega e é preciso conduzir para lá, por meio de iates, todas as mercadorias que são descarregadas em Norte, mesmo as destinadas ao comércio desta cidade. É evidente que esses transportes são favoráveis ao contrabando e que eles têm o inconveniente de majorar as despesas e aumentar os riscos. Entretanto, como o centro do comércio do sul da Capitania se achava há muito localizado em São Pedro e como os negociantes mais ricos da região aí têm suas residências e seus armazéns, tendo a cidade sido dotada de uma sede de Administração, é claro que não se podia priva-la bruscamente dos privilégios usufruídos, embora em prejuízo dos interesses gerais".

           "É sede de uma paróquia e residência de um juiz de fora (nomeado há menos de três anos). Há uma escola nacional de Latim, aberta em 2 de outubro de 1820. Compõe-se a vila de seis ruas muito desiguais. A mais comprida, denominada rua da Praia, é dotada de belas casas e mela se vêem quase todas as lojas e vendas, bem sortidas".

           "Entre os homens de Rio Grande, todos negociantes, encontrei quase a mesma frieza e os modos desdenhosos dos habitantes do Rio de Janeiro. São em parte constituídos de europeus nascidos em uma classe inferior e que não receberam educação alguma. Começam como caixeiros de lojas e passam depois a negociar por conta própria. Como os lucros do comércio neste país são avultados, eles não tardam a adquirir fortuna que jamais alcançariam em suas pátrias respectivas. Inflam-se de orgulho na progressão da riqueza".

         "Aqui o pão é menos caro e mais abundante que em outras regiões do Brasil devido à produção local do trigo. Em compensação a lenha é cara por causa da falta de matas nos arredores. A que se queima aqui vem do rio Camaquã".

         "O vigário informou-me que o valor das mercadorias exportadas da província durante o último ano subia a 4 milhões de cruzados".

         "Tal exportação consiste principalmente em carne-seca, couros e trigo; exportam-se também crinas e chifres de boi".

         "Em 1818 a quantidade de carne-seca exportada para Cuba e Estados Unidos chegava a 100 mil arrobas, há muito tempo taxando-se em 200 réis o imposto de cada arroba".

         "Mas no ano passado taxaram em 600 réis e a exportação desceu a 40 mil arrobas".

         "Espera-se seja ainda menor neste ano."

          Saint-Hilaire despede-se da vila de Rio Grande e — já apartado da comitiva do Conde da Figueira — segue para Montevidéu, através das verdes solidões do Taim e Chuí. Nesse percurso ele se refere à uniformidade do terreno, às pouquíssimas habitações, ao grande número de bovinos, ovinos, cavalos e jumentos pastando livremente. Descreve o processo de debulhar o trigo, a pata de cavalo, nas eiras circulares. Ao encontrar os primeiros espanhóis, descreve um certo complemento do traje: "Trazem o chiripá, feito do mesmo tecido dos ponchos, e que é uma espécie de cinto que desce até quase aos joelhos, à guisa de uma pequena saia". Numa estância perto do Chuí, o proprietário estava ausente mas sua esposa desempenhou as honras da casa. "Todas as mulheres que tenho encontrado, de Rio Grande para cá, têm conversado comigo, proporcionando-me gentilezas, e tenho observado que em geral possuem melhor bom senso que os próprios maridos." Passando à outra margem do Chuí, chega ao destacamento de guerrilhas acantonado no serro de São Miguel. "Os soldados aqui acantonados estão quase todos, atualmente, em gozo de licença. Pertencem a corpos de voluntários formados no correr da guerra atual pelo estancieiro Bento Gonçalves. Segundo informes que obtive, esse homem reunira sob seu comando uma dúzia de desertores, sendo depois reconhecido de utilidade pelos chefes militares, e alistara posteriormente um número considerável de voluntários."

NA CAMPANHA

      Com sua carreta, criados e um guia (miliciano da guarda de Quaraí), Saint-Hilaire subiu da Banda Oriental. "Quando eu estava em Belém (no rincão de Arapeí) havia dois caminhos a seguir. Um, passando pela povoação chamada Capela do Alegrete, e outro, o que adotei, marginando o rio Uruguai". Ele tornaria a se referir a essa Capela quando chegasse a Santa Maria (na Região Central): "Os produtos da lavoura local são consumidos aqui mesmo, mas pequenas quantidades são remetidas à Capela de Alegrete, onde os proprietários, tendo quase os mesmos hábitos dos gauchos, ainda não se dedicam à agricultura".

      Logo à entrada da deserta Campanha sul-rio-grandense, perderam-se ("não há nenhum caminho traçado") e o vaqueano não conseguia atinar com o rumo do destacamento de Santa Ana, seu primeiro objetivo. Depois de infrutíferas buscas, o vaqueano e o criado Joaquim Neves voltaram à guarda de Quaraí, para que o alferes comandante fornecesse um outro cicerone mais habilitado.

Não havia viva alma na planície. Mas sobravam bandos de avestruzes e veados ("hoje pudemos contar trinta veados em um só bando dos vários encontrados").

       Manadas de cavalos selvagens ("fugiram oito dos nossos cavalos, foram encontrados no meio de uma manada selvagem, José Mariano conseguiu pegar quatro deles"). E, por várias vezes, registra-se a presença de tigres ("Matias veio dizer-nos ter visto quatro tigres, dois grandes e dois pequenos, os quais estavam devorando o melhor dos meus cavalos").

      Chegam por fim à estância do alferes comandante da guarda de Santa Ana. Não encontravam a guarda porque fora mudada para duas léguas além. "Há dez dias eu não via casas nem outras pessoas além de meus criados e vaqueanos. Tive grande alegria ao ver por fim alguns ranchos."A estância se compõe de míseros ranchos, na maioria ocupados por famílias indígenas emigradas de Japeju". "Os estancieiros desta região, não tendo escravos, aproveitam a imigração dos índios para conseguir alguns que possam servir de peões. Os guaranis montam bem, têm prazer nisso, e muitos sabem amansar cavalos."

      Não foi agradável a impressão deixada pela estância e seu proprietário. "Eis um homem que apenas se nutre de carne, mora em mísero rancho, não tem outro prazer além do fumo e do mate, e é oficial de milícia. Mostra-se muito satisfeito; mas é de se esperar que uma tal existência deva reconduzir necessariamente à barbárie um povo tão resignado. Limitar suas habilidades a saber montar a cavalo, e seus costumes a comer carne, é reduzi-lo à condição de indígena e distanciá-lo da civilização, que, nos fazendo conhecer uma multidão de prazeres, nos força a trabalhar, a exercer nossa inteligência para conquistá-los e por isso a aperfeiçoar-nos, pois é unicamente pelo exercício de nossa inteligência que nos aperfeiçoamos. Sou tentado a acreditar que esse homem, apesar de ser branco, pertence aos habitantes desta região que têm costumes semelhantes aos gauchos, homens de maus costumes que perambulam pelas fronteiras."

      No Rincão da Cruz, vê um rodeio. O gado estava em repouso, cercado de peões. O terreno perdera o pasto, "o que não é para se admirar, pois é sempre no mesmo local que se reúne o gado". As pastagens são excelentes. Os animais, grandes e de boa raça.

       Chega por fim a um autêntico oásis: a estância de São Donato, pertencente ao Marechal Chagas. Cinco léguas de campo, seis mil bovinos, duzentos cavalos. Atendida por um capataz e dez peões.

      "Fui bem acolhido pelo capataz, que me ofereceu pêssegos, figos e melancias. De todas as regiões por mim percorridas até agora, na América, não encontrei outra em que os produtos europeus produzissem tão bem como aqui."


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