segunda-feira, 20 de abril de 2020

Por que o tema "200 anos da chegada de Saint Hilaire no RS" merece atenção especial

por Rogério Bastos
@rogeriopbastos

UMA CAPITANIA MARCADA PELA GUERRA

         E assim, ao longo dos meses, vai o viajante francês registrando com fidelidade os usos e costumes da Capitania. Da maior importância são suas observações de ordem econômica, falando sobre a produtividade dos campos, a renda das atividades pastoris, o detalhamento da exportação e importação. Praticamente em toda a Capitania escuta queixas dos agricultores por causa da peste ferrugem, que, de uns anos a essa parte, vem dizimando os trigais. Parece-lhe ser, esse, um problema insolúvel, pois as sementes já vêm contaminadas por essa moléstia e os agricultores não dispõem de meios para substituí-las por outras, sadias.

           E dizer que a Capitania já exportara trigo até para os Estados Unidos!
Um outro assunto a que Saint-Hilaire se refere continuadamente é o aspecto demasiado militar do Rio Grande do Sul, aqui gerando uma sociedade castrense.
"Quando um dos estados europeus entra em guerra, todas as suas províncias fornecem soldados e, por conseguinte, se a nação se torna belicosa, o é em sua totalidade. No Brasil, tal não acontece. A fronteira meridional há muito tempo goza apenas curtos intervalos de paz, mas, salvo algumas tropas vindas de São Paulo e Santa Catarina, todos os soldados que combateram a Espanha são naturais da própria Capitania. Nenhum recrutamento foi feito nas províncias mediterrâneas e setentrionais. Disso resulta que, enquanto os habitantes desta Capitania se tornam completamente militarizados — dotados de um sentimento nacional que só a guerra faz nascer —, os povos das outras capitanias caem pouco a pouco na inércia "Em geral, os homens daqui são extremamente corajosos; contam-se deles milhares de feitos que demonstram sua intrepidez... Estão sempre dispostos às mais árduas lutas, mas ao mesmo tempo é difícil sujeitá-los a uma disciplina regular. Para guerrear, deixam sem pesar algum suas famílias, mas, após a vitória, procuram retornar aos lares. Nunca desertam pela cobardia, mas o fazem frequentemente quando os deixam inativos. Quando, antes da batalha de Taquarembó, o Conde da Figueira convocou os habitantes, foram os desertores que em 'maioria atenderam ao chamado. Apresentaram-se não somente porque viram o País ameaçado, mas ainda porque o conde prometera retorná-los aos lares logo fosse o inimigo vencido.

       "As tropas estacionadas na fronteira são em número de três mil homens, compostos de milicianos da região e de uma legião de paulistas. O soldo desses homens está atrasado há vinte e sete meses, e há três anos que eles vivem unicamente de carne assada, sem pão, sem farinha e sem sal. A ração de cada homem é de quatro libras de carne por dia".

         "Tenho por vizinho, em Porto Alegre, um comissário de guerra do velho exército português, para aqui vindo a fim de organizar o serviço de víveres destinados às tropas. Anda a braços com inúmeros obstáculos, devido à desonestidade dos chefes militares, acostumados a tirar proveito da desordem até agora reinante. Parece que não existe nenhuma escrita. Os oficiais requisitam gado dos estancieiros e dão vales que deveriam ser pagos pela Junta da Fazenda Real. Durante algum tempo os pagamentos foram feitos com pontualidade, mas atualmente estão suspensos por falta de verba".

      "Entre o Acampamento de Santa Maria e a estância de Restinga Seca, meu hospedeiro queixou-se muito dos abusos de que são vítimas. Muitas vezes seus cavalos são roubados, pelos oficiais, e cortam as pontas das orelhas, sinal de propriedade real. Mesmo quando requisitados, não se observa regra alguma nas requisições, tudo se faz arbitrariamente. Há algum tempo haviam levado muitos bois daquele distrito para Capela de Alegrete e Belém e acharam um excelente meio de evitar reclamações dos proprietários: não se lhes dar recibos. Meu hospedeiro esperava providências da Corte".

     "Não existe ainda um exército brasileiro, mas todas as capitanias têm suas tropas particulares, que não se entendem com uma direção comum e nem se compõem de um só conjunto. Há sérios inconvenientes nesse sistema militar. Como os corpos dependentes desta Capitania são quase inteiramente compostos de homens da região, tendo a guerra necessidade do grandes verbas e dando lugar a grandes fortunas, formou-se aqui uma espécie de aristocracia de família, embaraçosa para os capitães-generais e perigosa para a paz dos cidadãos".

       "As populações ficam expostas a vexames e rapinagens dos chefes e subalternos.  Entretanto são raros os que se queixam, "Pode-se dizer, com segurança que os franceses não suportariam, sem revolta, a centésima parte do que  aguentam, com tanta paciência, os habitantes da Capitania do Rio Grande do Sul”.

ECOS DA REVOLUÇÃO LIBERAL

       Enquanto Saint-Hilaire viajava por estas bandas, ocorrera no Porto a rebelião burguesa. Os insurretos pretendiam o retorno de D. João VI para Lisboa e a recondução do Brasil ao estado colonial. A 4 de outubro de 1820 entravam em Lisboa. Aboliram a regência, exigiram a convocação das Cortes e organizaram uma junta Provisória, incumbida de elaborar uma constituição liberal.

          No Brasil, as primeiras cidades que tiveram notícia da revolução foram Belém e Salvador. Em janeiro de 1821, a capita! do Pará depunha o governo regional e nomeava uma Junta Provisória. Dias depois o capitão-general da Bahia recusava-se a assumir a presidência da junta local e velejava para o Rio de Janeiro; houve um começo de conflito, com vários mortos e feridos, em face da reação do Marechal Felisberto Caldeira Brant Pontes (depois Marquês de Barbacena); mas ao final firmava-se a rebelião constitucionalista. Com a pressão também no Rio, D. João VI terminou admitindo a Constituição liberal para todos os seus domínios em 26 de fevereiro, os príncipes D. Pedro e D. Miguel juravam a sua aplicação, sob frenéticas aclamações.

          Na Capitania do Rio Grande do Sul, o Conde da Figueira está ausente da capital e essa circunstância facilitou a aclamação de um governo trino interino, constituído pelo General Manuel Marques de Sousa como presidente, pelo ouvidor Doutor Joaquim Bernardino de Sena Ribeiro e pelo vereador mais idoso de Porto Alegre, Senhor José Rodrigues Ferreira.

           Saint-Hilaire encontrava-se em Rio Pardo, retornando à capital, quando foi informado de que haviam sido depostos o capitão-general em Porto Alegre e seu anfitrião o Sargento-Mor Mateus da Cunha Teles em Rio Grande. Tema para mais uma "reportagem" em seu diário de viagem:

     "A pequena insurreição ocorrida em Porto Alegre não foi obra do povo e sim de tropas excitadas pelos negociantes. Parece certo que tudo tenha passado em ordem, sem derrame de uma só gota de sangue. Este povo faz revoluções com uma sabedoria que não canso de admirar, mas cujas causas são fáceis de conhecer. Acostumado a uma cega submissão, este povo deve, naturalmente, conservar ainda respeito pela autoridade, mesmo quando se revolta contra ela. A amizade que os brasileiros têm pelo soberano é ainda uma das causas que, pelo menos durante algum tempo, os preservará de excessos".

     "Da revolução que vem de se operar é interessante notar estar todo mundo encantado com a Constituição, dela esperando grandes benefícios. Mas a maioria dos que esperam tanta felicidade não sabem sequer o que seja uma Constituição."

           Numa outra passagem de seu diário no Rio Grande do Sul, o arguto viajante francês parecia entrar nos domínios da futurologia:

     "Não sei o que se passa neste momento em Portugal, com o soberano D. João a caminho de Lisboa. Mas se ele e seus filhos não forem atilados, o Brasil será em breve perdido pela Casa de Bragança, e suas capitanias, como as colônias espanholas, tornar-se-ão teatro de guerras civis. O temor de tornar ao domínio português levará os brasileiros à revolta, ou ao menos servirá de pretexto para isso. E como a obediência que as diversas províncias do Brasil prestam ao soberano é o único laço que as une, é evidente que elas se separarão quando tal laço deixar de existir. Sem falar do Pará e de Pernambuco, as capitanias de Minas e do Rio Grande, já menos distanciadas, diferem mais entre si que a França da Inglaterra. Como poderão os habitantes, abandonados a si próprios, entenderem-se e cooperar para a formação de um Estado único?..."

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