por Rogério Bastos
@rogeriopbastos
ECOS DA REVOLUÇÃO LIBERAL
Enquanto Saint-Hilaire viajava por estas bandas, ocorrera no Porto a rebelião burguesa. Os insurretos pretendiam o retorno de D. João VI para Lisboa e a recondução do Brasil ao estado colonial. A 4 de outubro de 1820 entravam em Lisboa. Aboliram a regência, exigiram a convocação das Cortes e organizaram uma junta Provisória, incumbida de elaborar uma constituição liberal.
No Brasil, as primeiras cidades que tiveram notícia da revolução foram Belém e Salvador. Em janeiro de 1821, a capita! do Pará depunha o governo regional e nomeava uma Junta Provisória. Dias depois o capitão-general da Bahia recusava-se a assumir a presidência da junta local e velejava para o Rio de Janeiro; houve um começo de conflito, com vários mortos e feridos, em face da reação do Marechal Felisberto Caldeira Brant Pontes (depois Marquês de Barbacena); mas ao final firmava-se a rebelião constitucionalista. Com a pressão também no Rio, D. João VI terminou admitindo a Constituição liberal para todos os seus domínios er a 26 de fevereiro, os príncipes D. Pedro e D. Miguel juravam a sua aplicação, sob frenéticas aclamações.
Na Capitania do Rio Grande do Sul, o Conde da Figueira está ausente da capital e essa circunstância facilitou a aclamação de um governo trino interino, constituído pelo General Manuel Marques de Sousa como presidente, pelo ouvidor Doutor Joaquim Bernardino de Sena Ribeiro e pelo vereador mais idoso de Porto Alegre, Senhor José Rodrigues Ferreira.
Saint-Hilaire encontrava-se em Rio Pardo, retornando à capital, quando foi informado de que haviam sido depostos o capitão-general em Porto Alegre e seu anfitrião o Sargento-Mor Mateus da Cunha Teles em Rio Grande. Tema para mais uma "reportagem" em seu diário de viagem:
"A pequena insurreição ocorrida em Porto Alegre não foi obra do povo e sim de tropas excitadas pelos negociantes. Parece certo que tudo tenha passado em ordem, sem derrame de uma só gota de sangue. Este povo faz revoluções com uma sabedoria que não canso de admirar, mas cujas causas são fáceis de conhecer. Acostumado a uma cega submissão, este povo deve, naturalmente, conservar ainda respeito pela autoridade, mesmo quando se revolta contra ela. A amizade que os brasileiros têm pelo soberano é ainda uma das causas que, pelo menos durante algum tempo, os preservará de excessos".
"Da revolução que vem de se operar é interessante notar estar todo mundo encantado com a Constituição, dela esperando grandes benefícios. Mas a maioria dos que esperam tanta felicidade não sabem sequer o que seja uma Constituição."
Numa outra passagem de seu diário no Rio Grande do Sul, o arguto viajante francês parecia entrar nos domínios da futurologia:
"Não sei o que se passa neste momento em Portugal, com o soberano D. João a caminho de Lisboa. Mas se ele e seus filhos não forem atilados, o Brasil será em breve perdido pela Casa de Bragança, e suas capitanias, como as colônias espanholas, tornar-se-ão teatro de guerras civis. O temor de tornar ao domínio português levará os brasileiros à revolta, ou ao menos servirá de pretexto para isso. E como a obediência que as diversas províncias do Brasil prestam ao soberano é o único laço que as une, é evidente que elas se separarão quando tal laço deixar de existir. Sem falar do Pará e de Pernambuco, as capitanias de Minas e do Rio Grande, já menos distanciadas, diferem mais entre si que a França da Inglaterra. Como poderão os habitantes, abandonados a si próprios, entenderem-se e cooperar para a formação de um Estado único?..."
PRIMÍCIAS DAS TRADIÇÕES GAÚCHAS
No capítulo anterior, vimos Saint Hílaire afirmando que o Rio Grande do Sul e Minas Gerais — apesar da identidade de língua e origem — eram mais diferentes do que a França da Inglaterra. Que características regionais seriam essas, a ponto do genial francês ter sido levado a uma afirmativa dessa natureza?
Mais alguns tópicos, pinçados aqui e ali e reagrupados com linearidade:
"Chamou-me a atenção, desde minha entrada nesta Capitania, o ar de liberdade de todos que tenho encontrado e a destreza de seus gestos, livres da languidez que caracteriza os habitantes do interior. Seus movimentos têm mais vivacidade e há menos afabilidade em suas maneiras. Em uma palavra: são mais homens".
"Nas proximidades de Viamão, fiz um longo passeio para colher ervas. Achando-me um pouco confuso quanto aos caminhos a seguir, dirigi-me a uma casa que avistei ao longe. A dona da casa deu-me um negro para indicar-me o caminho. Ao ficarmos sós ele se apressou em demonstrar admiração por ver-me a pé. É que nesta região toda gente, mesmo pobre, inclusive os escravos, não dá um passo sem ser a cavalo".
"Em todo o Brasil os melhores leitos compõem-se de um simples colchão de palha de milho, mas na primeira estância à que cheguei na Campanha nem isso existia e cada qual dormia sobre o arreiame de seu cavalo. A carona serve de colchão e o lombilho de travesseiro. Sobre a carona põe-se o pe/ego e deita-se envolto no poncho".
"A pecuária pouco trabalho dá. O gado é deixado à lei da natureza, em completa liberdade. O único cuidado que reconhecem necessário é acostumar os animais a ver homens c a entender seus gritos, a fim de que não fiquem completamente selvagens, deixem-se marcar quando preciso, e possam ser laçados os que se destinarem à castração ou ao corte. Para tal fim o gado é reunido, de tempos em tempos, em determinado local, onde fica durante alguns dias, depois voltando para as pastagens, em liberdade. A essa prática chamam parar rodeio e ao local onde juntam os animais dão o nome de rodeio. "Ao entrar nesta Capitania verifiquei logo os hábitos carnívoros de seus habitantes. Em todas as estâncias veem-se muitos ossos de bois, espalhados por todos os cantos, e ao entrar nas casas das fazendas sente-se logo o cheiro de carne e de gordura".
"Meu soldado cortou a carne em pedaços da espessura de um dedo, fez ponta em uma vara de cerca de 2 pés de comprimento e enfiou-a à guisa de espeto em um dos pedaços, atravessando-o por outros pedaços de pau, transversalmente, para estender bem. Enfiou o espeto obliquamente no solo, expondo ao fogo um dos lados da carne, e, quando o julgou suficientemente assado, expôs o outro lado".
"A chaleira de água quente está sempre ao fogo e logo que um estranho entre na casa se lhe oferece o mate. O uso dessa bebida é geral aqui. Toma-se ao levantar da cama e depois várias vezes ao dia. A cuia tem a capacidade de mais ou menos um copo, é cheia com a erva até a metade, completando-se o resto com água quente. Conhece-se que a erva perdeu sua força e que é necessário trocá-la quando, ao derramar sobre ela a água quente, não se forma espuma à superfície. A primeira vez que provei essa bebida, achei-a muito sem graça. Mas logo me acostumei a ela e atualmente tomo vários mates, de enfiada. Acho no mate um ligeiro perfume, misto de amargor, que não é desagradável. Há muitos méritos nessa bebida, dita diurética, própria para combater dores de cabeça e para amenizar os cansaços do viajante, e na realidade é provável que seu amargor torne-a estomáquica e por conseguinte necessária em uma região onde se come enorme quantidade de carne, sem os cuidados da perfeita mastigação".
"Há homens muito ricos, inúmeros são os estancieiros que dispõem de renda de até 40 mil cruzados. Todavia, em suas casas, nada existe que anuncie tal fortuna. Um campônio francês, com mil escudos de renda, vive com mais conforto. É no tocante ao equipamento de seus cavalos que o povo desta região procura demonstrar maior luxo. Os estribos fazem-nos de prata. As rédeas, testeiras e rabichos de seus cavalos são guarnecidos de chapas desse metal. Entretanto asseguram-me que os proprietários não ajuntam dinheiro, jogam hoje muito menos que outrora, e eu pergunto a todo mundo em que empregam o dinheiro. Mas é preciso dizer também que a generosidade de muitos deles absorve somas consideráveis. Suas bolsas estão sempre abertas aos parentes e amigos e eles dão ou emprestam com extrema facilidade".
"Tenho já observado, muitas vezes, que os mineiros não são arraigados à terra natal. Nenhum hábito particular os retém, e eles não têm pesar em sair de Minas Gerais à procura de melhores situações, pois que sua inteligência lhes garante meios fáceis de subsistência em qualquer parte. Os habitantes desta Capitania, ao contrário, nunca emigram, porque sabem que fora dela serão obrigados a renunciar ao hábito de estar sempre a cavalo e em parte alguma encontrarão tamanha abundância de carne".
"A vida pastoril, tomando o vocábulo em sua verdadeira acepção, é própria dos primeiros estágios da civilização, quando as regiões estão ainda despovoadas. Quando a população aumenta e as terras se dividem, é preciso dedicar-se à agricultura, que exige maiores conhecimentos que a criação de animais e portanto conduz o homem ao aperfeiçoamento. Em geral o emigrante do reino, tendo aprendido um ofício ou tendo sido criado em meio puramente agrícola, conserva sempre um certo desprezo pelos costumes grosseiros desses homens que lidam com o gado e levam uma vida pouco diferente da dos selvagens. Todavia não acontece o mesmo aos filhos de europeus. As primeiras coisas que se oferecem às suas vistas são cavalos e gado, aprendem a montar tão bem quanto os que os cercam e, não vendo elogios senão para isso, entendem não existir outras habilidades".
"Aliás, a infância sempre achará inexpressável prazer no sentimento da sua superioridade. Esse prazer é experimentado quando a criança torna-se dona de um cavalo, quando ajuda a parar o rodeio, a matar um boi e retalhá-lo“.
"Um pai europeu não deixa, na verdade, de falar à sua família a respeito de sua pátria, exaltando-lhe as vantagens e demonstrando desdém pela América. Mas seus filhos, não sendo europeus e sim americanos, irritam-se com o desdouro dos pais, por sentirem-se humilhados."